Joaquim Barbosa https://joaquimbarbosa.adv.br/ Advocacia Mon, 14 Jun 2021 12:44:57 +0000 en-US hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.2.2 https://joaquimbarbosa.adv.br/wp-content/uploads/2021/03/Joaquim-Barbosa-Logo-150x150.png Joaquim Barbosa https://joaquimbarbosa.adv.br/ 32 32 Destravar qual reforma tributária? https://joaquimbarbosa.adv.br/destravar-qual-reforma-tributaria/ https://joaquimbarbosa.adv.br/destravar-qual-reforma-tributaria/#respond Mon, 03 May 2021 15:18:38 +0000 http://joaquimbarbosa.adv.br/?p=1009 Thiago Buschinelli Sorrentino Professor do IBMEC/DF. Mestre em Direito Tributário e Doutorando em Ciências Jurídicas. Joaquim Barbosa Serviu aos três Poderes da República. Em 1984 foi empossado no cargo de Procurador da República. De meados de 1985 até o final de 1987 foi chefe da consultoria jurídica do Ministério da Saúde. Em junho de 2003… Read More »Destravar qual reforma tributária?

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Thiago Buschinelli Sorrentino
Professor do IBMEC/DF. Mestre em Direito Tributário e Doutorando em Ciências Jurídicas.
Joaquim Barbosa
Serviu aos três Poderes da República. Em 1984 foi empossado no cargo de Procurador da República. De meados de 1985 até o final de 1987 foi chefe da consultoria jurídica do Ministério da Saúde. Em junho de 2003 tomou posse no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. De 2012 a 2014 foi Presidente do Supremo Tribunal Federal.

 

Como a atenção e a energia pública e privada nacional estão quase inteiramente concentradas na questão sanitária, a discussão sobre a remodelagem do sistema tributário vai ficando em segundo plano. É claro que a perda de força do debate dessa questão também é fruto das profundas divisões existentes entre os vários grupos da vida nacional cujos interesses a reforma pode vir a afetar.
Tramitam no Congresso Nacional atualmente as PECs 45 e 110, o Simplifica Já e o PL 3.887/20. Porém, algo de muita relevância escapa à observação dos animadores de todos esses projetos de reforma – a paulatina reforma tributária paralela que se opera no âmbito do chamado contencioso tributário em curso no país.
Como a Constituição brasileira fixa como objetivos fundamentais da República o bem-estar social, o fortalecimento dos princípios democráticos, o desenvolvimento econômico, a redução da pobreza e das desigualdades sociais que tanto nos singularizam, uma reforma tributária consequente precisa ter ao menos dois propósitos essenciais: (1) permitir a organização de forma equilibrada do sistema produtivo, de modo a distribuir entre os diversos setores da economia sua parcela justa de contribuição e, não menos importante, (2) ter como alvo o indivíduo.
A tributação é um elemento essencial e estruturante das sociedades, e isso desde tempos imemoriais. Tributar é fazer com que cada integrante da “polis” contribua concretamente para o bem comum na exata medida da sua capacidade. Da soma das contribuições de cada cidadão e de cada ente produtivo decorre o desenvolvimento econômico, a melhoria generalizada das condições de vida e de empregabilidade e a distribuição de renda.
Aparentemente, parece haver amplo consenso sobre pelo menos um ponto: o Brasil precisa instituir um sistema tributário mais simples, mais claro, mais transparente e que rompa de vez com as proverbiais ambiguidades legislativas geradoras de impasses interpretativos que estão na origem do barroco contencioso tributário que paralisa tanto o poder Judiciário quanto as instâncias decisórias administrativas especializadas vinculadas ao poder Executivo. Numa palavra, é urgente aprovar uma reforma que reduza a incerteza e que se traduza em menores custos para os setores que comprovadamente geram empregos, com a contrapartida de que a diminuição do chamado “custo Brasil” efetivamente estimule a criação de novas vagas de trabalho. Mas, é preciso dizer, só a simplificação não basta.
A ideia de se instituir o chamado Imposto sobre Valor Agregado com rigorosa alíquota única pode ser parte da solução. Parece claro que a atual concentração de benefícios fiscais na ponta da arrecadação se mostra altamente ineficiente, seja porque favorece de maneira pouco criteriosa certos nichos sociais sem a contrapartida de benefícios palpáveis ao cidadão. É imprescindível, pois, reformular o sistema para que os benefícios fiscais tenham impacto sobre aqueles que realmente deles necessitam, de modo direto. Um sistema de alíquota única também pode ser benéfico para o objetivo paralelo e importante de diminuir o número de controvérsias jurídicas e, por extensão, de reduzir a litigiosidade, que é especialmente elevada no campo tributário.
Note-se, porém, que entre as propostas em discussão há zonas de sombra e não faltam temas polêmicos. Seria de bom alvitre, por exemplo, que as propostas de mudança indicassem claramente quais serão os critérios de realocação da carga tributária, uma vez que já circulam estudos a indicar que a tributação dos setores financeiro e industrial será deslocada para o setor da prestação de serviços. Uma mudança de tal envergadura seria economicamente eficiente? Estaria ela em harmonia com o nosso pacto social?
Questão igualmente espinhosa é a relativa à proposta de introdução de um prazo relativamente elástico de transição do regime atual para o regime proposto, podendo o lapso temporal chegar a dez anos. Como se sabe, o Brasil está longe de possuir um histórico brilhante no que diz respeito ao cumprimento de promessas públicas e ao atendimento a expectativas legítimas das pessoas. E a justificativa para não se honrar os compromissos públicos invariavelmente é a mesma: o multifuncional princípio da “reserva do possível” – alegação que soa no mínimo paradoxal, já que externada invariavelmente por um Estado ao qual raramente faltam recursos para honrar despesas cuja urgência é no mínimo questionável.
Para lidar com a incerteza, o regime de transição deve prever mecanismos rígidos para impedir “puxadinhos” que desfigurem a estrutura da reforma, além de impedir a postergação indefinida de seu prazo. Caberia ao Congresso especial atenção para não ceder à tentação de criar pequenas “exceções” na definição das alíquotas, as quais serviriam apenas para beneficiar os grupos privilegiados de sempre.
Também seria altamente importante vincular a alíquota única à devolução personalizada dos incentivos à população de baixa renda sob a forma de benefícios diretos. É o caso dos benefícios destinados à cesta básica, cuja transformação em benefícios particulares diretos à população necessitada é uma obrigação inadiável. De fato, estudos do IPEA e do MF indicam que a verdadeira progressividade do sistema será atingida com esse mecanismo de devolução personalizada. Noutras palavras, o sistema novo somente poderá ser aplicado concomitantemente à criação dos benefícios diretos para a população carente do auxílio estatal.
Por fim, mas não menos importante, a reforma tributária deve vir acompanhada ou imediatamente secundada por uma criteriosa revisão das regras de direito orçamentário. Nosso sistema orçamentário é opaco e propenso a burlas. Nele se escamoteiam os reais destinatários dos recursos públicos, nos seus escaninhos se escondem incontáveis interesses paroquiais nem sempre compatíveis com os interesses superiores da nação. Nenhuma reforma tributária produzirá efeitos positivos se o sistema de gastos permanecer inalterado.
Em resumo, deve ser dada prioridade à reforma tributária que incorpore mecanismos aptos a garantir a segurança jurídica do cidadão, que reduza de maneira significativa a complexidade e a litigiosidade inerentes ao sistema como um todo e que promova o imediato resgate ou a introdução de benefícios fiscais que sejam justificáveis à luz do pacto republicano. Em suma, restaurar a confiança no Estado-tributário, conferindo-lhe credibilidade e legitimidade.

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Poder de Polícia e Dignidade da Pessoa Humana https://joaquimbarbosa.adv.br/poder-de-policia-e-dignidade-da-pessoa-humana/ https://joaquimbarbosa.adv.br/poder-de-policia-e-dignidade-da-pessoa-humana/#respond Mon, 19 Apr 2021 14:57:55 +0000 http://joaquimbarbosa.adv.br/?p=915 Joaquim Barbosa Serviu aos três Poderes da República. Em 1984 foi empossado no cargo de Procurador da República. De meados de 1985 até o final de 1987 foi chefe da consultoria jurídica do Ministério da Saúde. Em junho de 2003 tomou posse no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. De 2012 a 2014 foi… Read More »Poder de Polícia e Dignidade da Pessoa Humana

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Poder de Polícia e Dignidade da Pessoa Humana
Joaquim Barbosa
Serviu aos três Poderes da República. Em 1984 foi empossado no cargo de Procurador da República. De meados de 1985 até o final de 1987 foi chefe da consultoria jurídica do Ministério da Saúde. Em junho de 2003 tomou posse no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. De 2012 a 2014 foi Presidente do Supremo Tribunal Federal.

 

Existiria, em princípio, alguma vinculação entre o conceito jurídico de ordem pública e o princípio de salvaguarda da dignidade da pessoa humana? Em que circunstâncias pode o Estado fazer uso do seu poder de polícia para, em nome da preservação da dignidade da pessoa humana, restringir o exercício, pelo cidadão, de alguns dos seus direitos fundamentais?
A resposta a estas e outras questões foi dada em recente decisão da Justiça administrativa francesa, lançada em processo que se singulariza pela natureza grotesca dos fatos que lhe são subjacentes e pela riqueza das reflexões jurídicas que enseja.
Os fatos, largamente debatidos nos meios de comunicação franceses, remontam a outubro de 1991. Uma conhecida empresa do ramo de entretenimento para jovens decidiu lançar, em algumas discotecas de cidades da região metropolitana de Paris e do interior, um inusitado certame conhecido como “arremesso de anão” (“lancer de nain”), consistente em transformar um indivíduo de pequena estatura (um anão) em projétil a ser arremessado pela platéia de um ponto a outro da casa de diversão.
Movido pela natural repugnância que uma iniciativa tão repulsiva provoca, o prefeito de uma das cidades (Morsang-sur-Orge) interditou o espetáculo, fazendo valer a sua condição de guardião da ordem pública na órbita municipal. Do ponto de vista legal, o ato de interdição teve como fundamento o Código dos Municípios, norma de âmbito nacional (a França é um país unitário) que disciplina de forma minuciosa o exercício da ação administrativa estatal no plano municipal. Nos termos desse Código (art. 131), incumbe ao prefeito (“le maire”, autoridade eleita), sob o controle administrativo do representante do poder central na respectiva circunscrição (Préfet), o exercício do poder de polícia no município, podendo intervir em atividades ou limitar o exercício de direitos sempre que necessário à preservação da ordem pública.
Por outro lado, a decisão administrativa do Prefeito se inspirou em uma norma de cunho supranacional, o art. 3º da Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Insatisfeita, a empresa interessada, em litisconsórcio ativo  com a pessoa que contratara, Sr. Wackenheim, ajuizou ação perante o Tribunal Administrativo de Versailles visando a anular o ato do prefeito.
Em primeira instância, os autores obtiveram êxito, já que a corte administrativa (na França, os órgãos jurisdicionais, mesmo em primeira instância, têm em regra a estrutura colegial) julgou procedente o “recours pour excès de pouvoir” por eles ajuizado e anulou o ato do Prefeito, entendendo que o espetáculo objeto da interdição não tinha, por si só, o condão de perturbar a “boa ordem, a tranquilidade ou a salubridade públicas”.
Mas, ao examinar o caso em grau de recurso, em outubro de 1995, o Conselho de Estado, órgão de cúpula da jurisdição administrativa, reformou a decisão do Tribunal Administrativo de Versailles, declarando que “o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da pessoa humana” (“Le respect de la dignité de la personne humaine est une des composantes de l’ordre public; que l’autorité investie de pouvoir de police municipale peut, même en l’absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte à la dignité de la personne humaine”. (Revue du Droit Public, 1996, p. 564)
Aparentemente circunscrita a um caso específico e inusitado, a decisão “Morsang-sur-Orge” veio, em realidade, trazer sensível modificação a uma antiga tradição jurisprudencial estabelecida na França nas primeiras décadas deste século. Por outro lado, ela amplia sobremaneira a base jurídica em que tradicionalmente se buscou a fundamentação para a ação do poder de polícia do Estado, agora reforçada com a inclusão de uma noção nova, inteiramente sintonizada com as correntes de pensamento jurídico em voga neste século. Ela traduz, também, a crescente influência exercida pela jurisdição constitucional e pela jurisdição de cunho internacional sobre a tradicional Justiça administrativa francesa, celebrada e copiada em diversos países mas historicamente impermeável às influências externas.

A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL
Vista sob o prisma do direito comparado, a reviravolta jurisprudencial operada no caso ora analisado é rica em ensinamentos. Ela mostra, de um lado, a rigidez principiológica em que se assenta a prática jurisdicional realizada pela Justiça especializada da França. De outro, revela mais uma vez o repúdio histórico do Conselho de Estado a mudanças jurisprudenciais abruptas, preferindo invariavelmente a evolução paulatina, anunciada em casos banais embora emblemáticos, e quase sempre através de decisões “de rejet”, isto é, recusando o pedido da parte autora. Foi o que ocorreu no caso “Morsang-sur-Orge”.
Com efeito, ao anular o ato do Prefeito, o órgão jurisdicional de primeiro grau nada mais fez do que aplicar ao caso uma antiga jurisprudência do próprio Conselho de Estado, à base da qual se encontra um julgado de referência (“arrêt de principe”= “leading case”) denominado “Benjamin”, de 1933, do qual a doutrina extraiu dois princípios cardeais do enquadramento jurídico da ação do poder de polícia. O primeiro desses princípios é o da excepcionalidade da intervenção do poder de polícia, resumida na formulação lapidar: “la liberté est la règle, la restriction de police l’exception”. Foi à luz desse princípio que se construiu a grande tradição liberal que marcou a Terceira e a Quarta Repúblicas francesas, notadamente em matéria de liberdade de reunião, de expressão, de costumes e até mesmo no campo do direito do trabalho (ex: anulação, não obstante expressa proibição legal da embriaguez no local de trabalho, de um dispositivo do regulamento interno de uma empresa privada que instituíra, em caráter obrigatório, o exame “alcooltest” para os empregados). Foi ainda com base nesse princípio que se consolidou o entendimento, repetido em inúmeros acórdãos desde então, de que somente  circunstâncias excepcionalmente graves, suscetíveis de ensejar sérios distúrbios da ordem pública, seriam aptas a justificar o cerceamento de alguma franquia ou liberdade fundamental.
Outro princípio extraído da jurisprudência tradicional diz respeito à natureza “material” do conceito de ordem pública, cuja preservação constitui objetivo essencial a ser alcançado mediante a ação restritiva do poder de polícia estatal. Em seu clássico “Précis de Droit administratif et de droit public” (Sirey, 12a ed., 1993), Maurice Hauriou estabeleceu com precisão a noção de ordem pública em matéria de polícia administrativa. Disse  Hauriou: “L’ordre public, au sens de la police, est l’ordre matériel et extérieur”. Através dessa expressão lapidar, o que se queria dizer é que a interdição ou restrição ao exercício de direitos, sob pretexto de intervenção do poder de polícia para manter a ordem pública, só se justifica em casos excepcionais, em que seja manifesto o perigo de “desordem material”, isto é, de distúrbios externos. Com isso se excluía toda e qualquer apreciação de cunho “imaterial” ou “moral”. Noutras palavras, só é admissível a restrição a uma das liberdades fundamentais, tais como a de culto, de reunião ou de expressão, em casos de manifesto risco de tumulto decorrente do exercício da respectiva franquia constitucional. O que está em jogo, como se vê, não é o aspecto moral da manifestação em si mesma, mas as suas consequências externas.
Assim, a dissociação do conceito de ordem pública de toda e qualquer apreciação de cunho moral permitiu à jurisdição administrativa francesa a construção de vasto acervo jurisprudencial em prol da proteção dos direitos fundamentais. Foi sob os auspícios dessa concepção material de ordem pública, por exemplo, que se consolidou a interessante embora aparentemente ambígua jurisprudência em matéria de controle da difusão de obra cinematográfica, consistente em estabelecer o princípio geral da liberdade de difusão, admitindo-se porém a proibição, tão somente no plano municipal e em caráter excepcional, em casos em que fique claramente demonstrada a existência de circunstâncias peculiaríssimas de cunho local (ex: aguçada sensibilidade religiosa, especialmente em certas regiões historicamente marcadas por sérios e longos conflitos de natureza religiosa; filmes que retratem episódios traumatizantes ocorridos em pequenas localidades), aptas a ensejar distúrbios da ordem pública. É também à luz dessa jurisprudência que se explica a peculiar liberalidade francesa em matéria de costumes, ilustrada, por exemplo, pelo  fato de o Estado estabelecer a legalidade da prostituição e cobrar os respectivos impostos, ao mesmo tempo em que reprime severamente o proxenetismo.

Em resumo, segundo a jurisprudência e a doutrina tradicionais estabelecidas ao longo dos séculos 19 e 20, o argumento de ordem moral, isoladamente, jamais foi suficiente para justificar a intervenção do poder de polícia, seja no domínio da liberdade individual, seja em matéria de costumes ou ainda no campo da liberdade de expressão. Sempre se exigiu uma rigorosa demonstração do risco de ocorrência de distúrbios de “ordem material”.
Essa concepção tradicional de ordem pública, porém, foi de certa forma  modificada pela decisão “Morsang-sur-Orgue”, ora comentada.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: NOVO COMPONENTE DA ORDEM PÚBLICA
Com efeito, constitui consenso doutrinário, inclusive no Brasil, o entendimento de que o Estado detém o monopólio do poder de polícia administrativa, em nome do qual lhe é facultado condicionar ou limitar o exercício pelo indivíduo de algumas das franquias que lhe são outorgadas pela Constituição, tais como o direito de propriedade, a liberdade (de reunião, de iniciativa etc). O Professor René Chapus, em sua monumental obra “Droit Administratif Général” (Ed. Montchrestien, 1995), ensina que a polícia administrativa seria a “a atividade de serviço público tendente a assegurar a manutenção da ordem pública em diversos setores da vida social, prevenindo, na medida do possível, os distúrbios que poderiam atingi-la, ou, ao contrário, encerrando-os” (“l’activité de service public qui tend à assurer le maintien de l’ordre public dans les différents secteurs de la vie sociale et cela, autant que possible, en prévenant les troubles qui pourraient l’atteindre, sinon, en y mettant fin”). Esta é, de resto, mais ou menos a mesma conceituação prevalecente entre nós, traduzida na feliz definição de Maria S. di Pietro, para quem poder de polícia “é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”.
O campo tradicional de incidência do poder de polícia do Estado é vastíssimo. Engloba, entre outras atividades, o controle da circulação nas vias públicas, a vigilância sanitária exercida sobre o comércio de alimentos e medicamentos, a higiene dos logradouros públicos, o controle de epidemias etc. Contudo, as novas exigências da vida moderna, materializadas sobretudo no alargamento da ação legislativa a áreas outrora inexploradas tais como meio ambiente, a estética das cidades, a proteção do consumidor, conduziram à evolução do próprio conceito de ordem pública, ao qual vieram se somar  as noções de boa ordem, moralidade pública, salvaguarda de valores estéticos. Daí a proliferação de decisões judiciais restritivas do exercício de certas atividades ou de certos direitos, considerados  atentatórios à tradição e ao bom gosto estético (interdição de painéis publicitários) ou às regras de proteção ambiental.
No direito público francês, o conceito jurídico de ordem pública coincide em linhas gerais com a concepção adotada entre nós, como já dito. Naquele país, no entanto, a obsessão pelas categorizações, aliada à coerência jurisprudencial resultante da existência de um sistema de contencioso administrativo bastante homogêneo, conduziu ao consenso, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em torno do conceito de ordem pública, entendendo-se que a esse título o Estado pode cercear direitos individuais quando necessário à preservação, em uma determinada localidade, do sossego público (sûreté ou tranquillité publique), da segurança (sécurité) e da salubridade pública (salubrité publique). Esta é a doutrina clássica, alcunhada pelo Professor Chapus “la trilogie traditionnelle”. Paulatinamente, contudo, como já dito, foram sendo admitidos elementos de apreciação moral, sempre porém  atrelados à noção de distúrbios materiais.
A decisão “Morsang-sur-Orge” vem se somar a essa evolução jurisprudencial, alicerçada, contudo,  em  uma noção até então ainda não utilizada como legitimação jurídica à ação do poder de polícia estatal.
Inovadora em sua concepção, esta decisão se notabiliza, à primeira vista, pela impossibilidade de uma avaliação exata do seu alcance, já que são inúmeros os direitos fundamentais suscetíveis de serem atingidos pelos seus efeitos. Por outro lado, ela é reveladora da cada vez mais crescente penetração das noções de interdisciplinaridade na prática jurisdicional moderna, do avanço do direito internacional, assim como do inegável florescimento da prática da jurisdição constitucional naquele País.

O ALCANCE DA DECISÃO
O caso “Morsang-sur-Orge traduz, em primeiro lugar, uma limitação clara à liberdade individual e à liberdade de iniciativa, mais conhecida na França  como “liberté du commerce et de l’industrie”. Note-se, com efeito, que os argumentos da pessoa física envolvida no caso eram em princípio irrefutáveis. Ele alegou em sua petição que aderira “voluntariamente” ao programa, mediante remuneração. Logo, não havia por que dizer-se que aquela era uma atividade aviltante, pelo menos sob o ângulo da sua dignidade pessoal. Por outro lado, na condição de desempregado e acima de tudo inferiorizado no mercado de trabalho por causa da  deficiência física, aquela atividade era para ele nada mais do que um meio de sobrevivência como outro qualquer. Proibi-lo de exercê-la significava, portanto, do seu ponto de vista pessoal, a privação do gozo de um direito inalienável: o direito ao trabalho. Razão pela qual ele argumentou, não sem trair uma fina ironia, que não há dignidade quando não se dispõe dos meios elementares de subsistência.
Do lado da empresa que o contratou os argumentos eram não menos relevantes, pois  a atividade recreativa por ela patrocinada era lícita e respeitava integralmente as normas de preservação da ordem pública, isto é, dela não resultava o risco de ocorrência de distúrbios de ordem material, sobretudo porque realizada em recinto fechado. Ademais, tratava-se de atividade semelhante a várias outras legalmente admitidas (ex: a exploração de anões em espetáculos circenses, na televisão etc).
O Conselho de Estado, porém, foi implacável, ao decidir  que, em si mesma, aquela atividade era atentatória à dignidade da pessoa humana, podendo a Administração proibi-la através de medida de polícia administrativa, pouco importando o fato de que o cidadão  em causa aderira voluntariamente ao programa, frequentara cursos de treinamento para o espetáculo e tinha naquilo a sua única fonte de sustento.
Aí reside justamente outro aspecto inovador da decisão: tradicionalmente, o Estado  usa o seu poder de polícia para cercear direitos ou proibir atividades, quase sempre com vistas a proteger o cidadão contra a ação abusiva de outros cidadãos e até mesmo da própria Administração. A decisão ora comentada consagra um novo tipo de intervenção do poder de polícia: a que visa a proteger o indivíduo contra si mesmo. No caso, tratou-se de  medida de polícia administrativa cuja motivação é semelhante àquela de onde são extraídas imposições tais como as que obrigam motociclistas e condutores de veículos a usar capacetes e cinto de segurança, protegendo-os contra a sua própria imprudência.
Ilustrativa da crescente interconexão dos diversos campos do Direito e da multiplicação das fontes em matéria de prática jurisdicional, a decisão “Morsang-sur-Orge” exemplifica à perfeição a significativa importância que o direito supranacional vem assumindo nos dias atuais, a ponto de uma ordem jurisdicional tão singular como a Jurisdição administrativa francesa, fruto de práticas judicantes e de governo que remontam a vários séculos,  historicamente avessa a soluções jurídicas estranhas aos princípios por ela mesma concebidos, tenha se haurido, embora sem dizê-lo formalmente, em precedentes emanados de órgãos políticos e jurisdicionais de competência supranacional. Com efeito, até o advento da decisão aqui comentada, o princípio da dignidade da pessoa humana, tal como previsto na Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem, só era invocado no campo do direito penal e da bioética. De fato, é com base nesse princípio que a Corte e a Comissão Européia de Direitos Humanos têm proferido condenações, em razão da existência, nos ordenamentos jurídicos de alguns Estados, inclusive da França, de penas degradantes e/ou excessivas, bem como pela subsistência de condições prisionais tidas como sub-humanas. Também com base nesse princípio, algumas nações vêm sendo lançadas ao opróbio por permitirem ou mesmo por se omitirem com relação à realização em seu solo de práticas médicas ou científicas levadas a efeito sem o conhecimento das pessoas interessadas.
Quanto ao conceito de tratamento degradante, entende-se no âmbito da referida Convenção européia que é aquele “que humilha grosseiramente o indivíduo diante de outrem ou o leva a agir contra a sua vontade ou sua consciência (Caso “Tyrer” da Corte Européia de Direitos Humanos ). Noutras palavras, tratamento degradante é o que “pressupõe medidas suscetíveis de criar no indivíduo a sensação de medo, de angústia e de inferioridade, própria a humilhá-lo, a aviltá-lo e a privá-lo eventualmente da resistência física ou moral”. Daí a conclusão de  que o tratamento degradante seria, em princípio, de ordem puramente subjetiva, só podendo ser invocado caso a pessoa que o sofra julgue oportuno. A Corte européia, entretanto, já teve oportunidade de declarar que há tratamento degradante quando uma ação provoca um abaixamento na posição ou na situação de alguém, causando-lhe queda na reputação, seja sob a ótica da pessoa objeto da ação, seja na visão “de outrem”. Eis aí o reforço da ação protetora inserida em atos de natureza internacional, que cada vez mais contemplam cláusulas de proteção de direitos humanos. Em geral, tais cláusulas são concebidas para proteger o cidadão contra as arbitrariedades dos seus Estados nacionais ou de terceiros Estados. Aqui, no caso ora em estudo, o Estado se  valeu da Convenção internacional para proteger o cidadão contra si mesmo, estabelecendo o princípio da irrenunciabilidade de certos direitos, tais como os que proíbem o indivíduo de se submeter a tratamentos degradantes, ainda que bem remunerados.
A decisão comentada, como se vê, longe de se confinar ao domínio clássico do direito administrativo, envereda pelo  direito internacional dos direitos humanos,  inspira-se largamente na cada vez mais difundida doutrina da proteção dos fundamentais, e certamente terá importante  repercussão no campo da bioética. Sob a ótica do direito comparado, sua importância é inestimável.
Alguns poderão, entretanto, indagar: e o direito constitucional?
Bem, ao jurista brasileiro certamente haverá de causar estranheza o fato de que uma decisão dessa natureza tenha sido tomada  sem que em nenhum momento, em sua fundamentação, se tenha feito alusão à Constituição do país. A chave para esse enigma, contudo, está nas peculiaridades do direito público francês, especialmente no sistema de controle de constitucionalidade adotado naquele país. Sabe-se, com efeito, que a Constituição francesa de 1958 é, além de rígida, bastante sucinta. O seu texto, isoladamente considerado, certamente não oferece base segura para uma construção jurisdicional tal como a que vimos de expor. Porém, tendo a Constituição instituído um sistema de controle de constitucionalidade pouco propício à chicana processual tão ao gosto do jurista latino, o órgão incumbido desse controle, o Conselho Constitucional, tem-se empenhado numa prática jurisdicional calcada em princípios, muitos dos quais de natureza supraconstitucional e remontando a tempos imemoriais. Disso resulta que, não raro, a lei é declarada inconstitucional não por afrontar um dispositivo expresso da Constituição em vigor mas por ser contrária a um princípio inserido no Preâmbulo da Constituição de 1946 ou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em…..1789.
A decisão aqui comentada, embora silente a esse respeito, é tributária desse sistema de controle de constitucionalidade, já que, em 1994, o Conselho Constitucional decidiu, ao examinar a arguição de inconstitucionalidade de uma lei versando sobre doação e utilização de elementos e partes do corpo humano, “elevar” o princípio da dignidade da pessoa humana ao status de “principe à valeur constitutionnelle”. E o fez valendo-se não de uma disposição da Constituição em vigor mas de uma declaração de princípios inserida na Constituição do pós-guerra (1946), cujo teor é o seguinte: “Ao amanhecer da vitória conquistada pelos povos livres sobre os regimes que tentaram avassalar e degradar a pessoa humana, o povo francês proclama mais uma vez que todo ser humano, sem distinção de raça, de religião nem de crença, possui direitos inalienáveis e sagrados” (“Au lendemain de la victoire remportée par les peuples libres sur les régimes qui ont tenté d’asservir et de dégrader la personne humaine, le peuple français proclame à nouveau que tout être humain, sans distinction de race, de religion, ni de croyance, possède des droits inaliènables et sacrés”).

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